Hamilton, Direito e Bastidores do Poder
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O convite para contribuir à nova edição do livro do Blog Livre Instância, foi irresistível: refletir, em poucas páginas, sobre direito, cultura e sociedade. Escolhi Hamilton: An American Musical porque a caneta de Lin‑Manuel Miranda funde de maneira incomparável a história detalhada da experiência americana com os ritmos do rap e do R&B, com leitmotiv operático, para recontar a trajetória de Alexander Hamilton, imigrante caribenho que se tornou o primeiro secretário do Tesouro dos Estados Unidos.
A montagem completou dez anos em cartaz na Broadway — e continua com casa cheia, agora celebrando o retorno de Leslie Odom Jr. ao papel de Aaron Burr. Durante a pandemia, uma filmagem com o elenco original estreou no Disney+, permitindo que qualquer pessoa conheça e acompanhe o espetáculo, sem precisar viajar ou gastar mais do que a assinatura do serviço. Toda a marcante trilha sonora está disponível na íntegra nas plataformas de streaming de áudio.
A “Sala Onde Aconteceu”
No primeiro ato, seguimos a ascensão de Hamilton — autodidata, brilhante, voraz leitor — das trincheiras da Revolução Americana ao círculo íntimo do general Washington. O segundo ato, mais político, retrata o parto institucional da nova República. É nele que explode “The Room Where It Happens”, número cantado por Aaron Burr. Burr — advogado, senador e, mais tarde, terceiro vice‑presidente — observa, com inveja, o jantar reservado em que Hamilton, Thomas Jefferson e James Madison selaram um grande acordo: os votos sulistas aprovariam o plano financeiro federal de Hamilton, enquanto a capital sairia de Nova York para as margens do Rio Potomac, embrião de Washington, D.C.
Burr não tem provas; só indícios, cochichos de bastidor e a sensação de que o jogo político se decide longe dos holofotes. Sua indignação pulsa no refrão: “No one else was in the room where it happened”. Para ele, o pacto traiu a base nova‑iorquina de Hamilton e trocou apoio legislativo por vantagens estratégicas — a quintessência do quid pro quo; no bom português “toma-lá-dá-cá”.

Corrupção bilateral e o véu da opacidade
O episódio é didático para o Direito Penal: crimes de corrupção dependem de acerto clandestino entre agente público e particular, sem vítima imediata e quase sempre sem testemunhas. Falta‑lhes meio de prova direta — exatamente o drama de Burr.
No Brasil, a opacidade dessas práticas dificulta o trâmite do inquérito tradicional (notícia‑crime, depoimentos, perícias). Por isso, na última década e meia, ganharam relevo meios heterodoxos: rastreamento de fluxos financeiros (follow the money), interceptações telemáticas, ações controladas e, sobretudo, a colaboração premiada. Quando um dos partícipes rompe o silêncio e entrega planilhas, mensagens ou roteiros de valores, a porta se entreabre — e o Ministério Público consegue recompor a narrativa que antes existia apenas "na sala".
Do Potomac ao Brasil contemporâneo
A analogia não é mero devaneio histórico. O compromisso de 1790 foi troca política legítima ou vantagem indevida? Nem os historiadores convergem. A discussão ecoa no Brasil contemporâneo: onde termina a articulação política — legítima em qualquer democracia — e começa o tráfico de influência ou a corrupção passiva? A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem dispensando a demonstração de contraprestação ilícita concreta (ato de ofício) desde o julgamento do caso “Mensalão” (Apn 470/MG). Ainda assim, não nos parece suficiente a simples convergência de interesses ou o recebimento de alguma vantagem que pareça “indevida” ao acusador[1].

Lições de um musical
Assistir a Hamilton lembra que instituições são obras humanas, sujeitas a ambição, vaidade e ressentimento. Duas centenas de anos depois, seguimos debatendo transparência, financiamento público e limites éticos da barganha política — agora com ferramentas probatórias sofisticadas, mas sempre dependentes do fator humano.
Para quem atua no Direito Penal Econômico, o aviso de Burr continua atual: quando o fato ocorre entre quatro paredes, diversos outros meios surgirão para apurar o ocorrido. Para a persecução penal, o compromisso republicano — ontem e hoje — exige luz sobre os bastidores. E, quando a luz não basta, métodos investigativos capazes de rasgar o véu do acerto clandestino, respeitando as garantias que distinguem Justiça de peça teatral. O advogado atuante nesta área deve conhecer o contexto político destes acertos e os métodos de investigação utilizados ara apurá-los. Apenas assim será capaz de proporcionar defesa efetiva, processual e no mérito.
Termino reiterando a recomendação: assista a Hamilton. Além de entretenimento vibrante, é aula sobre poder, retórica e responsabilidade.
[1] Ver, por exemplo, LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; GRECO, Luís. A amplitude do tipo penal da corrupção passiva. Jota, 26/12/2018. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-amplitude-do-tipo-penal-da-corrupcao-passiva.
Artigo: Guilherme Brenner Lucchesi
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